Livrarias em Tempos de Crise



Olá pessoal. Escrevi este texto numa madrugada (quando ainda trabalhava em uma livraria, em meados de 2009), depois de ter lido um outro texto públicado no ótimo site Overmundo. O nome do texto é Livrarias em Tempos Modernos. Como trabalho em uma, ele me fez refletir sobre a visão crítica que o autor mostra em suas últimas visitas, se estava lúcida, ou pouco parcial. Recomendo que antes de ler o meu texto, leiam-no. Concluí que ele é um romântico, e feito por uma pessoa completamente aquém da realidade. Este texto é uma réplica, uma resposta, um desabafo, uma crítica, uma denúnicia, ou todos eles. Fica a seu critério.

"Existem diversos gêneros literários. Tem livro que ensina, transforma. Toca fundo mesmo. Diz algo nas entrelinhas. Deixa pulga na orelha. Tem livro pra deixar na prateleira, principalmente se for 'clássico da literatura'. Eu mesmo, Fernando.
Tem aqueles que a gente não lê, mas sabe da história, pra parecer "cara legal" pros amigos. Uma livraria que se preze, tem ao menos, 50 mil peças no seu acervo. 40 mil títulos diferentes. Lançamentos quentinhos. Giro de produto de no máximo 45 dias. Livraria rentável. Retorno certo, morou? Bom, eu trabalho numa delas. Tenho que decorar pelo menos 1 décimo desses títulos, bater as metas diárias, hora pra entrar, mas não pra sair.

Num sábado ameno -- daqueles gostosos de tomar sorvete, deitado na grama do parque -- um rapaz da minha idade, entra na loja, de chinelo, camiseta comprada em Goa, Índia, e me pergunta:
-- E ai, voce tem o livro do Premio Nobel desse ano?
-- O sr. sabe o nome do autor?
-- Não, mas acho que é francês. Editora grande...sabe...aquela?

O livro pode estar entre o vasto acervo de 50 mil exemplares, e se eu levar 2 segundos olhando cada lombada, cada pilha, dá uns bons meses. Por acaso, eu tinha lido sobre o prêmio. Passei pelo caderno de cultura do jornal. Pergunto:
-- Amigo, acho que o nome do livro é 'O Africano', não?
-- Não sei, você é quem devia saber. Penso: que idiota. É como seu eu fosse um guru e soubesse de todas as repostas. Digo:
-- Vamos olhar no Oráculo.

Ele me olha torto e diz "Como?". Mostro-lhe no Google como encontrar o título mais remoto em 3 segundos. Digo:
-- O nome do autor é Jean Marie Gustave Le Clezio. O livro chama-se O Africano.

Será que o cliente esperava mesmo que eu, com o meu segundo grau completo aos trancos feito em escola pública, gravasse um nome desse tamanho, que nem ao menos é na língua do meu país? Aos 15, eu tinha repulsa a livros. Mal lia os didáticos. Aprendi o pouco que sei na raça:
-- Desculpe senhor, só por encomenda.
-- Que absurdo, deixa pra lá. Vou comprar ali na livraria da vila vizinha. Ao girar nos calcanhares, o cara me tromba numa pilha de livros de auto-ajuda, que se esparramam pelo chão. Daria um braço apostando que foi de propósito.

Sabe, tenho muitos clientes. De todos os tipos. Me chamam pelo nome, gravaram de tanto olhar para o crachá. Vão embora se estou de folga, e perguntam quando vou estar. Muitas vezes, ouço estórias e histórias. Esposas hospitalizadas. Divórcios. Suspeitas de traição. Filhos inconsequentes, indiciplinados. Pessoas solitárias. Falamos de livros, muito pouco até. É o tempo que tenho pra aprender, trocando idéias, dividindo opiniões. Transformando leituras pessoais, em indicações. Memorizando. Arrumando mesas e prateleiras por temas, prêmios, gêneros.

Cumprindo metas. Nem todos nós aprendemos a importância da leitura. Nem todos nós estudaram em escolas particulares, que pedem pra ler 'Pipi Meia-Longa' no lugar de 'Memórias Póstumas de Brás Cubas'. Eu teria adorado ler a Pipi aos 14 anos. Como muitos, aprendemos tarde demais pra sermos cidadãos engajados, bem sucedidos, antenados. Tarde. Trabalhar de domingo a domingo é a escolha que tivemos. E aceitamos.

Os livreiros cansaram de botar a mão na massa. Vestiram ternos. Compraram ações. Discutiram metas. Contrataram funcionários. Genéricos. Pra manter nos eixos, enquanto se ocupam dos pagamentos, fornecedores, encalhes, remessas, campanhas de marketing, essas pequenices. Capital. É nisso que penso quando olho a sociedade em que vivemos. Estão todos tentando capitalizar algo. Dinheiro. Conhecimento. Ações. Credibilidade. Amor. Atenção. Poder. informação. Tudo aquilo que nos rodeia passa por processos voluntários ou involuntários de manufatura, otimização, distribuição. Revolução Industrial e coisa e tal. Até hoje, poucas tentativas de fugir deste processo, foram bem sucedidas.

Mas tudo bem, não é o fim do mundo. Para mim, o mundo acaba mesmo quando um cliente acha que eu devo suprir todas as suas necessidades existencias com maço de papel encadernado. Põe toda a culpa do atraso da educação e das políticas públicas nos meus ombros. Me critica por não falar várias línguas, visitar lugares turísticos, ganhando dois salários mínimos, sustentando família." Ai, no fim da história, acho que o buraco, é mais fundo do que gostariamos.

Fernando Miranda

2 comentários :

  1. Olá, Fernando!

    Ótimo texto, hein? Quem dera todos os vendedores de livros fossem interessados e conscientes como tu. Excelente.

    Parabéns pelo blogue. Muito bem escrito e pautado. :o)

    Forte abraço!

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  2. parabéns Fernando, tuh escreve super bem meu kirido, e mostra que importanão é o nível acadêmico que possuimos mas sim o aprendizdo que acululamos durante a nossa curta vida \o/

    Adorei o Blog!!

    ABS.

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